Ah menina, não te engane por esses desenhos nos muros, de uma criança empinando uma pipa, mas na verdade é
a pipa que empina a criança e ela nem percebe isso!
Vê aquele homem correndo verticalmente em direção ao sol,
sem conseguir conter a náusea? A vida o deixou assim;
chorando a inocência dos monstros, sentindo a cartilagem dos feridos…
Agora o chamam de louco. Idiotas! Não vêem que ele
está a fazer poesia…
Falar-te de flores? Como? Se as que plantei
nem me lembro onde para poder colhê-las?
Vê em mim essas marcas de vinho tinto?
é assim que escrevo um livro pois
roubaram me a biblioteca, caverna de palavras
puras onde minavam meus versos.
Ah, menina não fique assim como eu,
brinque zombando de tudo que ainda há tempo,
porque não terás rumo e tua bussola será
os braços cansados dos remos.
Arrebenta os cadeados dos parques fechados
E anda de bicicleta com o moleque triste
Que te observa do lado de fora da grade
não seja assim como ele, e que nunca
te vejam cavando trincheiras nos
olhos quando a saudade chega
Vá, enterre os ossos das asas
que morreram na primavera.
Endureça seu coração, marca em brasa
a veia líquida do amor e sigas em frente.
Amadureça que nem bicho e foge para as matas
mas não deixa que te cacem, enquanto fruto
mantenha-se verde, porque se te colherem só valerás
prá eles o tempo de enfeitares a fruteira…
Fere o rosto do outono com o bisturi do vento
e farás com que as estações desgarrem-se de ti pouco a pouco.
Vá menina, que o tempo afogará teus bons momentos
na palidez do nunca mais. Parta agora
E de bagagem, só o sorriso da boneca de pano que
sempre será o mesmo, a cortina dançarina da sala, as
cirandas que não se romperam e o amigo que cavou
dentro dos olhos o poço da tua ausência
Nada mais, além disso, porque pesam muito as lembranças…
Vá embora logo, suma da minha frente! (antes que
eu me arrependa e te peça pra ficar)
Porque da minha parte não haverá verso nem prosa,
não haverá dedicatória, nem dor, nem lágrima,
nem aceno, sem colo.
Prá que não fique assim tão tola como eu agora
deixando que a vida pareça um grande oceano
e eu só tenha essa gota de sal pra te ofertar
Presa nos olhos.
Maria de Fátima Cruz, 2006